Jean-Luc Moulène Técnico Libertário

 

Técnico é alguém que trabalha de forma empírica, que tem uma relação directa com as coisas e os materiais. É aquele que conhece os segredos da matéria, os indícios. Aquele que possui ferramentas e competências capazes de expandir as técnicas da cognição, aquele que pode alternar o processo de produção e influenciar as técnicas do observador, em constante mudança. Para Jean-Luc Moulène, a própria vida é uma técnica.

 

Técnico libertário [technicien libertaire] não está longe da figura do bricoleur, que se dedica à sua bricolagem, que monta e testa diferentes formas e materiais. Não emprega apenas uma habilidade ou uma especialização, mas utiliza várias técnicas de produção, pelo que o seu trabalho é ecléctico. Como diz Moulène, “a minha actividade consiste em libertar-me das categorias”. Mais do que um termo existente e historicamente aclamado, technicien libertaire é uma metáfora do método de Moulène, no qual podemos reconhecer um sólido e feliz legado vanguardista. Uma investigação sobre a localização e origem deste termo, agora iniciada, será desenvolvida na publicação que acompanha esta exposição, que examinará as técnicas eclécticas e empíricas de Moulène em articulação com os interiores burgueses da Casa São Roque.

 

O termo libertaire foi inventado por Joseph Déjacque em 1857. O libertarismo é uma corrente política que defende a autonomia, a liberdade, quer política quer económica. Nos últimos dois séculos, esteve vinculado a diferentes movimentos sociais do anarquismo e do liberalismo, tentando desafiar este último. Technicien libertaire foi aplicado à obra de Moulène pela primeira vez em 1997, por Vincent Labaume, no seu ensaio “The Paradise of Suspicion”. Labaume recorda como se deparou indirectamente com este termo através do ensaio de Pier Paolo Pasolini “The Cinema of Poetry”, onde se utiliza um termo semelhante para explicar as técnicas cinematográficas poéticas de Jean-Luc Godard. Neste sentido, a liberdade técnica é poética – e tão próxima do gesto de Moulène: o técnico é um poeta. Esta designação volta a aparecer em 2009 no texto de Briony Fer sobre a œuvre de Moulène, intitulado “Technicien libertaire”.

 

Aqui não podemos deixar de lembrar as palavras de Antonin Artaud: “Não posso conceber uma obra que se desligue da vida”. A prática de Moulène está inspirada neste legado -do Teatro da Crueldade ao movimento Situacionista – onde o espectáculo foi modelo da sociedade. Nos anos 70, colaborou como actor em performances do accionista Hermann Nitsch, sendo também próximo de Michel Journiac, que tratava o corpo como “carne social”. Todos eles utilizavam a fotografia como testemunho. Foi assim que o trabalho de Jean-Luc Moulène surgiu da fotografia, daquilo a que chamou “documentos”, que se tornaram o seu principal recurso durante longos anos, até que – sob a constante alternância e transformação de protocolos – se converteram em objectos tridimensionais e esculturas. As suas técnicas estenderam-se ao fabrico industrial, carpintaria, materiais encontrados, pintura, impressão 3D, artesanato como a cerâmica, o sopro de vidro ou a fundição em bronze. “Trabalho no domínio da cultura material, da sociologia, da antropologia”, diz Moulène. “A sociedade, as pessoas trocam através de objectos, pelo que estes objectos estão sempre repletos de algo relacionado com a sociedade e com as pessoas que os usaram”.

 

Para Jean-Luc Moulène, o objecto é um evento de percepção. O artista não fornece um manual do utilizador. Cabe ao espectador fazer a descoberta. “A obra de arte é um lugar de conflito – o espectador tem de encontrar o seu próprio caminho e posição”. Na exposição da Casa São Roque, revelaremos muitos enigmas e novas obras, feitas durante a pandemia do coronavírus, no estúdio do artista em Le Buisson, na Baixa Normandia, para onde este se mudou depois de deixar Paris, em 2019, alguns meses antes do aparecimento do COVID-19. Estes objectos são possivelmente os primeiros a serem executados sob as novas condições de vida do artista, criados no seu novo estúdio recentemente concluído. Entre outros, incluem-se Compas, um compasso amarelo feito com um ramo de madeira cortado em duas hastes, sendo que uma contém um lápis para desenhar, TransBébu, um boneco de plástico transformado com uma nova cabeça de vidro, e uma escultura viva, Densités, uma composição formada por duas plantas Sophora embrulhadas numa malha metálica industrial. Também se poderá encontrar ça ouvre, ça ouvre pas (abre, não abre) montado especialmente para o andar principal da Casa São Roque. Este grande objecto é feito com pedaços de cartão colados juntamente com baús coloniais portugueses e brasileiros, fabricados em Lisboa e no Rio de Janeiro, onde, curiosamente, lemos no rótulo: “Premiado na Exposição Universal de Paris de 1889”, o outro, de 1900, foi anunciado da seguinte forma: “Para viagens e exportações entre o Reino, as Ilhas e África”.

 

Jean-Luc Moulène nasceu em Reims, em 1955. Frequentou a Académie des Beaux-Arts, em Versalhes, e estudou Estética e Ciências da Arte na Sorbonne, em Paris, cidade onde viveu a maior parte da sua vida. Participou em grandes exposições internacionais, como a Documenta X, Kassel (1997), a Bienal de Veneza (2003 e 2019), a Bienal de São Paulo (2002) e realizou numerosas exposições individuais em museus e instituições: Centre Pompidou, Paris (2016), Secession, Viena (2017), Villa Medici, Roma (2015), Dia: Beacon, Nova Iorque (2011), Carré d’Art-Musée d’Art Contemporain, Nimes (2009), Culturgest, Lisboa (2007), Musée du Louvre, Paris (2005), Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris (1997). Ao longo dos anos, o seu trabalho tem sido discutido e interpretado por eminentes escritores e pensadores, como Alain Badiou, Vincent Labaume, Yve-Alain Bois, Briony Fer e Reza Negarestani, entre outros.

 

A exposição Técnico Libertário é organizada em colaboração com a Galeria Miguel Abreu, Nova Iorque; Galerie Chantal Crousel, Paris; Galerie Pietro Spartà, Chagny e Thomas Dane Gallery, Londres. Será acompanhada por uma publicação bilingue, editada por Barbara Piwowarska, com novos ensaios de Jean-Pierre Criqui, Vincent Labaume e uma conversa entre Jean-Luc Moulène e Philippe Vergne (a ser publicada na Primavera de 2022).

 

Curadora: Barbara Piwowarska

 

 

Exposição: 17 de Outubro de 2021 – 4 de Maio de 2022