Exposições

Coleção Peter Meeker

Obras de 1982 – 2019

 

Coleção Peter Meeker: Obras de 1982–2019 é uma extensa exposição na ocasião do 4º aniversário da Casa São Roque – Centro de Arte no Porto, Campanhã. Apresenta uma seleção de obras da coleção de arte internacional de Peter Meeker (Pedro Álvares Ribeiro), iniciada na década de 1980 no Porto e inclui 40 artistas e mais de 600 obras de arte. Baseada na amizade e dedicação de longa data com os artistas colecionados, em muitos casos alcançou extensas representações das suas obras e séries artísticas, que hoje se tornaram canónicas/. Embora continue em crescimento, o seu principal acervo colecionado tem-se formado até 2019, tornando-se, desde então na Coleção da Casa São Roque. Trabalhos de artistas portugueses, polacos e espanhóis constituem o núcleo principal da coleção e, refletem as longas estadias que o colecionador vivenciou nestes três países, além da relação de proximidade que desenvolveu pelas quatro cidades: Porto, Varsóvia, Lisboa e Madrid.

 

Esta é a terceira exposição em grupo da coleção de Peter Meeker, depois de à Sala de Jogos de 2022 no salão histórico do clube “O Elvas” como parte da exposição 15 anos de MACE em Elvas (curadoria de Barbara Piwowarska), e da mais recente exposição no âmbito do programa Arte em São Bento na Residência do Primeiro-Ministro no Palacete de São Bento em Lisboa (curadoria de João Silvério). Coleção Peter Meeker: Obras de 1982–2019 na Casa São Roque (Porto) deriva destas duas exposições e foi preparada em conjunto por Barbara Piwowarska e João Silvério. Centra-se em gerações de artistas que cresceram em países que recuperaram a liberdade após regimes políticos repressivos e que partilham posições existenciais: os polacos que refletem a transformação após 1989, e os portugueses que refletem a modernização após a revolução de 1974.

 

Fairy Tale (O conto de fadas) de Paweł Althamer (1994–2004) apresenta figuras-fantoche de pais vestidos com roupas de segunda mão, dançando em círculo com as suas mãos de arame dadas, enquanto esperam para buscar seus filhos na aula de artes em Varsóvia. Esta instalação, remodelada, destruída e recriada diversas vezes, aborda a ação e o vídeo Dancers em que Althamer, conhecido pelas suas “esculturas sociais”, práticas da “forma aberta” e cursos de arte para grupos marginalizados, convidou colaboradores que se conheceram num abrigo para pessoas em situação de sem-abrigo, para praticar dança ritual circular.

 

É justaposto com um vídeo coreográfico de Ângela Ferreira, de 1998, filmado no Estádio Nacional de Portugal – uma comissão pública do Estado Novo inaugurada em 1944 por António de Oliveira Salazar, em que uma figura feminina vestida com um uniforme militar faz um exercício semelhante a uma dança, reminiscente dos grandes eventos dedicados ao desporto, especialmente à ginástica, uma disciplina educativa escolhida pela propaganda do regime. O uniforme é um suporte de memória da Guerra Colonial (Guerra de Independência de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique) – tema e questão central na obra de Ferreira.

 

A coreografia do ato de servir foi estudada por Jorge Molder na sua série fotográfica Waiters (1986), na qual captou figuras de empregados de mesa e os seus movimentos no café Nicola, em Lisboa. Desfocadas em composições surrealistas e gestos ilegíveis, estas fotografias são também exemplos raros na sua obra: elas não retratam as autorrepresentações do autor, o rosto e o corpo do próprio Molder, mas, através dos espelhos e da distorção da imagem, revelam o seu método corporal voyeurista.

 

O corpo está também presente num relevo em pele de Gerardo Burmester da série Maria (1989), “objetos-moldura” que tem vindo a trabalhar nessa altura. Emergindo das suas práticas performativas e pictóricas, o exame da condição da pintura e do seu tema, resultaram na transição para espaços pictóricos tridimensionais e objetais que incorporavam a moldura de madeira da obra.

 

As questões da pele e do corpo são cruciais para a série pequena, háptica e “manipuladora” das perversas esculturas em pele Santos (1988) de Pepe Espaliu, mas também para o objeto branco-cinzento quebradiço de Franz West, exposto nas proximidades. Feito de gesso, cartão e gaze, é possivelmente um dos Adaptives (Paßstücke) dos anos 80 – objeto interativo com um estatuto peculiar entre uma obra de arte e uma prótese. De pé numa prateleira da lareira neoimperial, sobre a qual foi originalmente colocado o busto de Napoleão Bonaparte – parece um membro enfaixado.

 

A série histórica Carrying (1992) de Espaliu deriva das suas oficinas e ações públicas em San Sebastián e Madrid, concebida por ele como uma “escultura social”, em que pessoas o carregavam sentado nos seus braços, manifestando a fragilidade do seu corpo infetado pela SIDA. As versões escultóricas dos “carregamentos” eram opostas: apenas um ano antes do seu falecimento, em 1993, elas foram fundidas e forjadas em ferro como construções fortes: cabos-bastões sólidos conectados às partes imaginárias do corpus ou de uma liteira.

 

Os primeiros trabalhos de Mirosław Bałka, artista polaco de fortes laços com Espanha, são exibidos em diálogo com Carrying. Duerme bien, Luis (2001) é uma instalação-homenagem ao amigo de Bałka, o pintor catalão Lluís Claramunt. Consistem em materiais típicos, modestos e comemorativos utilizados por Bałka. Uma mortalha de contraplacado é coberta com sabão, evidenciando a lavagem do corpo e a ausência da figura. Combinada com uma cama de brinquedo da infância do artista, pequena demais para acomodar o corpo – aborda o desconforto dos sonhos após a morte. Buen Libro Vacio (1999) é uma placa de ferro montada em postes de construção. Parece um livro aberto que recolhe um líquido ausente (ou conhecimento) na lata anexada, como entalhes feitos em árvores para canalizar a resina para o recipiente.

 

A visão escatológica é partilhada por Rui Chafes, que trata a vida como um processo ardente. Muitas das suas esculturas representam pessoas desaparecidas, corpo ausente e desconforto da vida, incluindo a série Incêndio de 2016. São análogas às obras seriadas anteriores, como Lições de Trevas de 2002, que são de medidas humanas, e existiam inicialmente em grupos maiores nas primeiras instalações, assemelhando-se a um exército de soldados ou grupo de crentes.

 

Paulo Nozolino, conhecido pela sua série existencial de fotografias que refletem as suas longas viagens em série pelo mundo, captando sociedades em mudança (especialmente em 1989–1996), está presente através de duas formas diferentes de olhar para o passado. Regard sur le Musée Fenaille / avant travaux (1993) foi uma série realizada no museu histórico-arqueológico localizado numa mansão privada do colecionador Maurice Fenaille em Rodez. Retrata o museu antes da renovação, em que expositores, pinturas e esculturas têm uma segunda vida tranquila não oficial, são deixados de lado, não sendo ainda “expostos”. Um dos Suspiros de chumbo (1997) retrata cruzes de lápides no cemitério de Veneza e faz referência a Venice Preserv’d (A Salvação de Veneza), de Thomas Otway, uma peça política do período da Restauração britânica.

 

Francisco Tropa utiliza um amplo índice de referências ao imaginário coletivo. O seu espectador é submetido a um movimento disruptivo de perceção que aciona redes de ligações, entre o enigma e a narrativa aparentemente ficcional. O olho vigilante (2001) faz referência direta à gravura de Jacques Callot de 1628, The Vigilant Eye, da série Lux claustri. Trata-se de uma redação interessante da iconografia bíblica de um Bom Pastor, representando um pau com um olho vigilante numa paisagem bucólica com alguns animais e nenhum humano. Em vez de um pau, Tropa fez dois em bronze e justapô-los com uma fotografia tautológica. O objeto mais recente é Maça, de 2019, um trompe l’oeil escultórico feito em bronze e pintado, que é mantido pendurado de forma lúdica, suspendendo a queda da árvore ou sendo apanhado por ela, suspendendo assim o pecado de Adão e Eva. É emparelhado com o pequeno objeto suspenso Lead (2008) de Monika Sosnowska, uma maçaneta de porta com a impressão da festa e dos dedos, feita de ferro e chumbo.

 

Duas das esculturas de madeira sem título de Rui Sanches (2000) estabelecem várias relações no espaço: uma entre a escala e a proporção, a segunda entre as duas obras e a terceira que resulta numa experiência de corporeidade do corpo e tempo do espectador. Este último elemento está presente quando observamos a construção estratificada das esculturas que consiste na sobreposição de placas de madeira, definindo a forma de cada uma das obras. Neste sentido, a ideia de tempo aproxima-se da prática do desenho, enquanto método, que nos permite pensar na corporeidade quase tátil de cada uma das esculturas, incorporando o corpo e a arquitetura envolvente.

 

Susana Solano, escultora catalã, mantém há muitos anos um diálogo próximo com artistas espanhóis e portugueses. Na Casa São Roque está exposto um objeto de bronze maciço de tamanho reduzido, invulgar em comparação com a grande escala das suas obras. Ao posicionar o corpo (ou a sua ausência), corresponde a esculturas de Bałka, Espaliu, West e Sanches. Assemelha-se a um contentor que se revela entre o que está dentro e o que está fora, como o corpo que simboliza a sua presença precisamente por revelar o seu “interior”, aparentemente vazio.

 

As obras de Monika Sosnowska são apresentadas em diálogo com José Pedro Croft e o legado construtivista. Um esboço inicial de uma escultura e um modelo analógico para a instalação de grande escala Bon Voyage (2000) assemelha-se às composições espaciais de Katarzyna Kobro ou aos modelos arquitetónicos de De Stijl. Preparado no estúdio de Sosnowska na Rijksakademie em Amesterdão, o protótipo foi concebido para ser colocado no interior da grande estrutura final, no chão, para introduzir o aspeto da escala. A obra de grande escala era uma composição híbrida que convidava à imersão na colorida, “pintura espacial”.

 

A seleção de obras de José Pedro Croft centra-se na noção de escala e, revisita vários períodos da sua obra, incluindo um conjunto de importantes esculturas realizadas em diferentes materiais: bronze pintado, madeira, metal, espelho, gesso (1988–1997), gravuras arquitetónicas-abstratas de diferentes formatos (1999), ou relevos arquitetónicos construtivistas de 2004. A escultura Sem Título, de 1997, desafia o nosso corpo no espaço onde é instalada provocando uma sensação de desequilíbrio, numa relação de tensão com a arquitetura do espaço e, contém elementos importantes do seu vocabulário plástico, que reconhecemos e identificamos na sua obra.

 

El rojo en el Periodico e El Verde en el Periodico (2012) de Ignasi Aballi são bons exemplos do seu processo artístico, neste caso constituído por fragmentos de impressões a jato de tinta sobre papel fotográfico. Aballi trabalha com diferentes suportes, como pintura, objetos, livros de artista, fotografia, filme e vídeo, e por vezes em instalações de grande formato. O tempo, a memória, ou a sua ausência, e assim a perceção de uma possível presença, provêm de uma prática de recolha de diferentes elementos do quotidiano, organizados num atlas de inventários e classificações – da narrativa ficcional à presença evocativa do material.

 

A pintura sem título de Pedro Casqueiro, de 1985, é uma das primeiras colecionadas por Pedro Álvares Ribeiro e marca o início da coleção. Nesta pintura a acrílico, a composição fragmenta-se e revela várias outras composições dentro da pintura, como se outras camadas de imagens, primeiro e segundo plano, figurativas e abstratas, se acumulassem continuamente, ultrapassando a superfície plana da tela através da colagem de outras pequenas pinturas.

 

Nos desenhos de Pedro Calapez do mesmo período (1984 e 1985) podemos reconhecer arquiteturas fictícias de matriz clássica, que se assemelham simultaneamente a casas, monumentos ou mamoas. Realizados com um gesto muito rápido, expressionista e físico de centenas de linhas de pastel de óleo, correspondem à paleta das suas pinturas, e são típicos da sua obra dessa década.

 

Arroios, 25 março 82 de Julião Sarmento (1982) é a obra mais antiga da coleção. Trata-se de uma pintura-colagem que se insere no vasto repertório de referências pessoais e autobiográficas do artista. Comemora a morte do seu avô (adotivo) e representa a desfragmentação dessa experiência, sendo composta por quatro imagens-fragmentos pintadas. A maior imagem central, na parte superior da obra, mostra o corpo num velório com orações em redor, um ritual tradicional antes do funeral. Por baixo da imagem, encontra-se uma inscrição, prática que Sarmento desenvolveu ao longo de toda a sua obra. Na parte inferior, desenhos surgem como fragmentos da memória dos que lhe são próximos, como dados para as narrativas posteriores que devem ser desenvolvidas e continuadas pelo espetador.

 

É emparelhada com a pintura a óleo sem título de Wilhelm Sasnal, típica dos anos 2000 – um instantâneo misterioso da vida quotidiana, uma paisagem polaca com blocos de apartamentos, campos arados ou fumo. A sua linguagem deriva de painéis de histórias, livros de banda desenhada e imagens fotográficas, e continua a ser uma voz importante da geração dos anos 70, que cresceu durante a transformação do sistema político após 1989. Esta vista sintética da cidade representa a sua cidade natal, Tarnów, e foi pintada a partir de uma fotografia da década de 1970 que retrata o local de construção de uma nova área residencial perto da casa dos seus pais. A prática de Sasnal inclui também filmagens e foi sempre socialmente empenhada, criticando manifestações da cultura de massas, utilizando um pastiche como forma de representação.

 

A seleção das primeiras obras de Pedro Cabrita Reis das décadas de 1980 e 1990 conversa com Mirosław Bałka, Francisco Tropa e Julião Sarmento. Inclui Pinturas Negras (1986 e 1998), bem como esculturas e instalações: Agnus Dei (1989), Um quarto dentro da parede (1989), A casa do Céu (1990). Estas esculturas, desde a pequena escala até à escala do corpo humano, são fortemente simbólicas e quase religiosas, residindo entre a memória e o esquecimento, entre o arquétipo e a palavra. São como ambientes sublimados, que se revelam pelos materiais e pelo processo de fabrico.

Augusto Alves da Silva é conhecido pela sua linguagem documental e pelas suas séries sociológicas, nas quais ironiza estereótipos da fotografia e da sociedade. A fotografia da série CNB (2001) corresponde aos seus gestos documentais de close up – focar um pormenor: a misteriosa cruz vermelha abstrata, que parece ser uma marca gravada no palco por um bailarino da Companhia Nacional de Bailado, uma marca do corpo ausente.

Pequenos objetos de Ana Jotta são apresentados como notas de rodapé da exposição da coleção. Inclui-se, na exposição, uma versão menos conhecida da sua marca autorreferencial J, feito em bronze polido como réplica de uma bengala. Também, aqui a autoria é posta em causa, pelo que a letra “J” constitui um trabalho irrisório, transgredindo modelos e modos de representação deslocados do seu contexto. A mãe – em forma de cruz católica feita com as caixas de cremes faciais “La Mer” embrulhadas em fita-cola preta – e O pai – semelhante a um punho branco feito de cartão e sacos do lixo – voltam à mesma parede, remetendo à exposição inaugural da Casa São Roque: A Inventória de Jotta.

 

Curadoria de Barbara Piwowarska e João Silvério

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